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O lugar de um outro 

 

Sabemos bem como são habitados os hotéis baratos do centro da cidade. Já vimos outros registros e imaginamos o bastante essas cenas, porque é vocação de nossas defesas morais dar forma àquilo que ultrapassa seus limites. Edu Marin retorna a esses locais para mostrá-los vazios, para buscar neles algo que permanece invisível. Em nossas fantasias, é um tanto mais difícil reter esse espaço por si mesmo, porque supomos se tratar de um ambiente sem identidade, porque esse cenário se apaga diante dos eventos extravagantes que acolhe, e porque é difícil entender esse estado de espera de um lugar marcado por uma rotatividade intensa.

 

O procedimento do artista é rigoroso, algo que se evidencia nas composições que cria, mas que é ainda mais marcante numa operação se dá pela seletividade e pelo decréscimo: são poucas imagens, poucos elementos em cada uma delas, raros efeitos além daqueles que ornamentam os locais e, acima de tudo, nenhum apelo fácil, nenhum drama. Mas permanecem nessas imagens aparentemente simples tensões que não se revelam de imediato: um recorte, um anexo, um nicho, uma fresta, elementos que devolvem complexidade às formas. Há também algo que transborda desse espaço e que nos implica.

 

Outros críticos já observaram que os lugares que Edu Marin fotografa são mostrados como ruínas, como palco de uma catástrofe. Esses quartos são igualmente ruínas em seu aspecto decadente, mas sobretudo no modo lacônico de insinuar a vasta quantidade de acontecimentos que testemunharam. Mesmo vazios, eles são plenos de histórias. São mostrados aqui num intervalo tenso entre as memórias que acumulam e os desejos para os quais permanecem de prontidão.

 

Entre os ruídos já pronunciados e as palavras que negociam o próximo encontro, seu silêncio grita. Entre a energia despendida e a que permanece recalcada, sua imobilidade perturba. Entre os hóspedes que saíram há pouco e aqueles que estão prestes a chegar, esse vazio está carregado de presença.

 

Todo quarto esconde segredos. Em nossa própria casa, esse é o lugar em que as fantasias são lapidadas lenta e discretamente, porque suas paredes esbarram num limite claro: uma família, um lar, uma propriedade privada, enfim, toda ordem que queremos preservar e comunicar. Já nestes lugares de intimidades efêmeras, se não há tempo para depurar fantasias, sobra liberdade para traduzi-las em ato. Mesmo que tudo se realize rápida e objetivamente, como em qualquer outro quarto, segredos permanecem. Só que agora eles se referem a uma história fragmentária que não pode ser atribuída a ninguém. Protegido pela impessoalidade desses ambientes, tais segredos se tornam arquetípico. É por isso também que temos a sensação de conhecer tão bem esses quartos que jamais frequentaríamos.

 

Há algo de reconciliador nessas imagens quando revelam a intenção de oferecer mais que um espaço utilitário. Suas luzes, cores, texturas, estampas, revestimentos e ornamentos tentam construir para cada um deles uma identidade. Pouco importa como classificaríamos o gosto que ali predomina, e tanto faz se essas formas não escondem sua decadência e alguma dose de improviso. O esforço estético que se esconde nesses arranjos é análogo às promessas de amor e felicidade que permeiam também os prazeres mais efêmeros.

 

O aspecto recalcado e decadente desses quartos é metáfora do próprio mal-estar do processo civilizatório. Eles são habitados por desejos que também nos constituem mas que, em nome de uma existência social, tratamos como sendo de um outro sempre distante. Esses quartos e tudo o que eles representam estão situados num centro que tratamos como periferia. Isso diz muito sobre a forma como ocupamos a cidade e também sobe o modo tenso como nos construímos como sujeitos.

 

Às vezes, diz Bachelard, um escritor deseja falar de seu próprio quarto. Mas “os valores de intimidade são tão cativantes que o leitor não lê mais esse quarto: reencontra o dele próprio” (Poética do Espaço, 1957). Por isso, pensa ele, é inútil descrever o quarto em demasia. No relato discreto que essas imagens produzem, nós também nos projetamos. Sabemos que em breve o silêncio será quebrado e que logo o espaço calmo será novamente ocupado pelas performances que bem conhecemos. E se esse estado de espera é de algum modo perturbador, é porque tomamos o ponto de vista da câmera como nosso. E ali colocados, aguardamos ansiosos a entrada em cena daquele objeto de prazer que pertence à realidade de alguém qualquer, mas que nunca se evade totalmente de nossa imaginação.

 

Ronaldo Entler

(texto do folder da exposição "Câmaras de Descompressão" na Casa da Imagem/2014)

(texto de parede da mostra)

 

Em algum momento, nosso imaginário já foi longe o suficiente para dar conta de tudo o que se passa no quarto barato de um hotel do centro da cidade. Mas é por meio de uma atitude comedida que Edu Marin nos implica nesses espaços: poucas imagens e, em cada uma delas, poucos elementos; poucos efeitos além daqueles que ornamentam esses ambientes e, acima de tudo, nenhum apelo fácil, nenhum drama.
 

Mesmo vazios, esses quartos são plenos de histórias. Nós os encontramos num intervalo tenso entre as memórias que acumulam e os desejos para os quais permanecem de prontidão. Entre os ruídos já pronunciados e as palavras que negociam o próximo encontro, seu silêncio grita. Entre a energia despendida e a que permanece recalcada, sua imobilidade perturba. Entre os hóspedes que saíram há pouco e aqueles que estão prestes a chegar, esse vazio se mostra carregado de presença.

 

Vocação de todo quarto, estes também guardam segredos. Mas aqui eles são feitos de intimidades rotativas e se referem a uma história fragmentaria que não pertence a ninguém. Assim, tais segredos se tornam arquetípicos. É por isso que temos a sensação de conhecer tão bem esses quartos que jamais frequentaríamos.

 

Há algo de reconciliador nessas imagens. Apesar da evidente decadência, elas mostram nesses lugares a intenção de oferecer mais que um espaço utilitário. As luzes, cores, texturas, estampas, revestimentos e ornamentos representam um esforço estético análogo à promessa de felicidade que permeia todos prazeres, mesmo os mais vulgares.

 

No mais, o que estranhamos neles corresponde ao próprio mal-estar do processo civilizatório. Eles são habitados por desejos que também nos constituem mas que, em nome de uma vida social, tratamos como sendo de um outro sempre distante. Esses quartos e tudo o que eles representam estão situados num centro que insistimos em tratar como periferia. Isso diz muito sobre o forma duvidosa como ocupamos a cidade e também sobre o modo tenso como nos construímos como sujeitos.

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